#03 Dá pra fazer produto trabalhando em consultoria?
Spoiler: Dá, mas é diferente de fazer produto em uma empresa de produto.
Existem várias formas de fazer produto. Algumas são consideradas mais desejáveis que outras, mas cada uma delas se encaixa em um contexto distinto e, consequentemente, cada uma delas será interessante para pessoas distintas.
Frequentemente, pessoas em transição de carreira me perguntam sobre o trabalho de produto em empresas de consultoria. Eu trabalhei dessa forma por mais de 15 anos e, como tudo na vida, tem prós e contras. É sobre isso que quero falar hoje.
Começando pelo começo: O que é consultoria?
O que chamamos de consultoria no contexto de desenvolvimento de software difere um pouco de outras áreas. Basicamente, consultorias são empresas de tecnologia cujo negócio é desenvolver software sob medida para outras empresas.
Essas empresas são conhecidas por termos diversos: Fábrica de software, Boutique de software, Software house, Outsourcing, Bodyshopping. Há diferença entre esses termos, mas, para o propósito desse texto, estou colocando todas essas sob o mesmo guarda-chuva: Consultorias.
A forma de trabalho também pode variar. Em geral, essas empresas trabalham com projetos que atendem clientes e resultam no desenvolvimento (criação ou manutenção) de software.
Algumas empresas executam esses projetos inteiramente em suas dependências. No mundo pré-pandemia, isso significava que as pessoas trabalhavam no escritório da consultoria, não no do cliente. No mundo atual, significa que seu Slack, sua liderança, o RH que vai te acompanhar são os da consultoria, não os do cliente. O contato com o mundo exterior é feito por um grupo de pessoas que retornam para a empresa-casa.
Também existe o modelo de contratação terceirizada em que a pessoa contratada está imersa no ambiente da empresa cliente. Se o trabalho for presencial, essa pessoa vai trabalhar nas dependências do cliente, tendo pouco ou nenhum contato com a empresa que originalmente a contratou. No trabalho remoto, a pessoa terá acesso aos mesmos serviços e ambientes utilizados por quem tem contrato direto com a empresa-cliente.
Entre esses dois extremos, há infinitas possibilidades para o nível de envolvimento que a pessoa terá com ambas as empresas, e esse envolvimento afeta a descoberta e construção de produtos digitais.
Minha experiência
Entre 2004 e 2020, trabalhei em quatro empresas que se encaixam na minha definição de consultoria: BHS, Stefanini, Thoughtworks e Bossabox.
Nos primeiros quatro anos, enquanto estava na faculdade, atuei como Desenvolvedora. A agilidade ainda não havia se popularizado e não se falava na importância da interação direta de pessoas desenvolvedoras com pessoas usuárias, então, meu contato com o cliente era limitado e sempre acompanhado de uma pessoa Analista de Requisitos ou Gerente de Projetos.
Os seis anos seguintes, em que trabalhei como Analista de Requisitos na mesma empresa, trouxeram mais variedade na forma de trabalho. Trabalhei tanto em projetos de escopo fechado quanto em projetos de manutenção, mais parecidos com o desenvolvimento de produtos que fazemos atualmente. Também tive a experiência de trabalhar por um ano e meio alocada em um cliente pela primeira vez.
Ainda considerada uma profissional Júnior (pois, naquela época, não existia a anomalia do “sênior de três anos”), eu não tinha poder de decisão, apenas documentava o que me passavam.
2014-2018
Em 2014, mudei de empresa e conheci a agilidade. Ali, como Analista de Negócios, comecei a me aproximar (lentamente) do que é hoje a gestão de produtos. Tive três fases bem distintas.
No primeiro, que durou quase um ano, liderei uma equipe de 17 pessoas na construção de um sistema de gestão de treinamentos. Era um projeto que vinha com problemas já havia dois anos, nenhum dos outros analistas queria trabalhar nele. Eu e o time ficávamos alocados no escritório da própria empresa-consultoria, com um gerente da empresa cliente trabalhando ali conosco. Outras pessoas clientes nos visitavam com frequência para reuniões ou homologação.
Eu tinha autonomia para decidir a ordem em que as coisas seriam desenvolvidas e podia influenciar nas decisões de escopo, mas não tinha nem acessos, nem tempo suficiente para fazer uma análise mais profunda e entender o que era necessário.
Quando esse projeto terminou, fui alocada em um cliente. No início, trabalhava em pequenos projetos, mas, por ter um bom relacionamento com pessoas de várias áreas, conquistei a confiança delas para dar sugestões e influenciar suas decisões.
A última fase ocorreu nesse mesmo cliente, quando a empresa passava pela famigerada “transformação digital”. Tínhamos dinâmicas, trabalhávamos colaborativamente e minha influência aumentou, embora ainda não pudesse decidir nada.
2018-2019
Mudei de emprego novamente em 2018. A terceira consultoria em que trabalhei é uma referência internacional, considerada uma das melhores empresas para se trabalhar no Brasil e criadora de tendências.
Meu cargo era o de Analista de Negócios, e minha função era o que hoje costumam chamar de PO Proxy. Eu estava em Belo Horizonte, no escritório da consultoria, com a maioria do time de desenvolvimento, enquanto o cliente e o PO oficial estavam no Chile.
Viajei para Santiago a trabalho quatro vezes, num total de sete semanas entre outubro de 2018 e maio de 2019. Quando estava lá, não me sentia uma pessoa de fora, tinha os acessos de que precisava e podia tomar algumas decisões. Foi a primeira vez que tive consciência de estar fazendo produto.
2020
Minha última experiência com consultorias começou em junho de 2020, já no meio da pandemia e com trabalho 100% remoto. Era um trabalho no modelo “freelancer profissional” (ou “prolancer”), com contrato PJ e obrigação de horários, mas com uma empresa para intermediar e apoiar. Tinha contato quase diário com o diretor de produto da empresa-cliente e também com pessoas de marketing. Também tinha acesso aos dados, podia fazer pesquisas, entrevistas e tomar decisões. Só me faltavam as informações estratégicas da empresa para direcionar minha estratégia de produto.
Certo, e agora?
No início de 2021, após encerrar meu primeiro contrato como prolancer, decidi que não gostaria de continuar trabalhando no modelo de consultoria e decidir buscar oportunidades em empresas que desenvolvem seus próprios produtos.
Sei que ficou longo, mas considero importante contar minha experiência com alguns detalhes por dois motivos:
Mostrar às pessoas as diferentes realidades;
Embasar minha opinião de não trabalhar mais em consultorias.
Antes disso, porém, vamos falar das vantagens.
Existem vantagens?
Com tudo o que eu já disse, você já deve estar antecipando algumas das desvantagens de se trabalhar em consultorias. Porém, existem motivos para eu ter trabalhado nelas por tanto tempo e para tantas outras pessoas que continuam trabalhando.
Dinamismo
Como as empresas de consultoria possuem clientes diversos, as pessoas que trabalham para ela costumam ter oportunidades de trafegar entre vários tipos de produtos e projetos. A variação pode ser no mercado ou tamanho da empresa cliente, nível de envolvimento com pessoas usuárias, modelo de negócio, tecnologias utilizadas, senioridade da equipe, escopo de atuação entre outros.
Com isso, as pessoas conseguem exercitar uma gama maior de habilidades do que se estivessem em um contexto específico por mais tempo.
Equipe
Em geral, empresas que trabalham nesse modelo têm em sua equipe algumas pessoas de alta senioridade para apoiar o restante das pessoas. Essas pessoas costumam ser alocadas em projetos de maior criticidade ou acionadas pontualmente para apoiar na resolução de algum problema.
O fato de ter vários clientes também exige que as consultorias tenham várias pessoas para funções similares - ou seja, você provavelmente não será a única pessoa de produto.
Dessa forma, além de ter ajuda direta quando você precisar, você fará parte de uma comunidade com outras pessoas fazendo produto em contextos distintos, o que também contribui para o aprendizado.
Estabilidade
Grandes empresas de consultoria de software tendem a ser mais estáveis do que empresas que desenvolvem seus próprios produtos. Novamente, isso ocorre devido ao portfolio de clientes e o planejamento de projetos. Quando um projeto é encerrado, a maioria das pessoas é rapidamente realocada para outras equipes que podem ter necessidade daquele perfil.
Muitas vagas
A rotatividade em empresas de tecnologia é muito alta. Para garantir que conseguirão atender seus clientes e executar os projetos de forma rápida, consultorias estão sempre contratando.
Dependendo da empresa, também é possível obter salários mais altos na contratação.
O outro lado
Tudo na vida tem seus prós e contras, aqui não poderia ser diferente.
Antes de listar o que considero como desvantagens de se trabalhar em consultoria, quero destacar que minha perspectiva é de uma pessoa que trabalha com gestão de produtos. Como estou focando em envolvimento, influência e decisão, a experiência de pessoas desenvolvedoras, designers ou de outros perfis será diferente, porque o que é esperado dessas pessoas é diferente (e eu não posso falar por nenhum deles).
Sensação de não pertencimento
Embora a presença de outras pessoas consultoras de produto possa contribuir para a criação de uma rede de apoio, quando se trabalha num modelo de alocação, a pessoa contratada pode se sentir descolada da empresa-casa, não sendo amparada por ela, mas também não sendo parte da empresa-cliente.
Esse problema é mais evidente no trabalho presencial, com a comunicação predominantemente síncrona. Porém, também precisa ser considerado no remoto, pois, o impacto pode ocorrer em diversos pontos, como avaliações de desempenho, promoções, problemas de infraestrutura, apoio da área de Pessoas, entre outros.
Dificuldades de acesso
Empresas digitais tendem a ter uma cultura mais horizontal e transparente, fomentando um ambiente em que as pessoas de produto conseguem navegar entre as diversas áreas para aprofundar seu conhecimento e tomar decisões mais assertivas.
Empresas-cliente, por sua vez, terão todos os tipos de cultura, incluindo aquelas mais controladoras.
Dentre as situações que passei, destaco:
Não ter acesso ao Google para fazer pesquisas de trabalho;
Não ter todas as ferramentas necessárias para executar meu trabalho;
Não ter permissão para ver os dados de utilização do produto;
Não ter acesso aos contatos de pessoas interessadas, dependendo de um ponto focal para intermediar;
Precisar pedir permissão para agendar reuniões.
Pouca autonomia
Em parte resultante da falta de acessos, a pessoa que trabalha com produto em consultorias pode ter menos autonomia para tomar decisões do que se trabalhasse diretamente para a empresa-cliente. Por exemplo, já estive na situação de, mesmo sendo mais sênior do que o representante do cliente, eu precisava da autorização dele pra tudo - e precisava acatar quando ele tomava decisões que eu sabia estarem erradas.
Baixa visibilidade estratégica
Por último, o que talvez seja o mais importante: Baixa visibilidade da estratégia da empresa-cliente, o que leva a produtos que não alcançam os resultados desejados. Informações estratégicas costumam ser confidenciais e mesmo com as cláusulas de confidencialidade dos contratos, nem todas as empresas-clientes se sentem confortáveis em revelar para prestadores de serviço.
Quanto mais alta a senioridade, mais alto o impacto negativo de não se envolver com a estratégia.
E então, dá pra fazer produto trabalhando em consultorias?
Como eu disse no spoiler: Sim, dá, mas é diferente de fazer produto em uma startup ou outras empresas que desenvolvem seus próprios produtos.
Não existe emprego perfeito, o que existem são oportunidades que podem ser mais ou menos adequadas para cada contexto.
Por vários anos, trabalhar em consultorias, fez sentido para mim. Há dois anos, percebi que não conseguiria mais crescer se não mudasse. Eu queria seguir o caminho da liderança, por isso, precisava me envolver mais com a estratégia e todas as áreas da empresa, o que é muito mais difícil quando você não faz parte daquela empresa. Foi a escolha certa para mim, naquele momento (e pode ser que eu mude de novo algum dia).
Na minha opinião, alguns perfis de profissionais podem se beneficiar desse modelo.
Profissionais em transição de carreira de áreas relacionadas a produto: Pessoas desenvolvedoras, designers, devops, analistas de qualidade, agilistas e outros perfis envolvidos no processo de desenvolvimento de software podem se beneficiar da proximidade com as pessoas de produto para aprender e fazer uma transição mais suave.
Profissionais em transição de carreira de áreas administrativas ou de pessoas: O que eu disse acima também se aplica a pessoas de outras áreas. Quanto mais a pessoa se aproximar do produto, mais conhecimento ela terá para fazer uma transição com segurança. Além disso, é mais fácil fazer uma transição interna do que externa. Já vi pessoas de comercial, business partne e outras áreas migrando para produto em empresas de consultoria.
Profissionais juniores, que nunca tiveram experiência profissional: Várias empresas de consultoria possuem programas de estágio ou trainee, o que facilita a entrada no mercado. E, devido a rotatividade nos projetos, novos profissionais podem ganhar uma experiência diversificada em alguns poucos anos.
Obviamente, em um país com milhões de desempregados e notícias de demissões em massa lotando o LinkedIn diariamente, a maioria das pessoas não pode se dar ao luxo de escolher onde trabalhar, nem de deixar um emprego sem garantia de algo melhor. Tudo bem! O importante é ter a clareza de onde você está, qual caminho você quer seguir e como a empresa pode te ajudar a alcançar seus objetivos (ainda que essa ajuda seja só pagando as contas).
Perguntas e respostas
Abri uma caixinha no Instagram e recebi algumas perguntas boas que não foram respondidas no texto, então vou responder aqui.
Perfil consultoria x empresa de produto
Não vejo tanta diferença no perfil técnico, mas, sim, nas habilidades comportamentais.
Para trabalhar com produto em consultoria você precisa saber se comunicar muito bem, negociar e influenciar seus clientes. Também precisa ser versátil e se adaptar rapidamente às mudanças de contexto.
Quais os principais cargos de entrada na área em consultoria?
Analista de negócios ou business analyst
Product Owner
Product Owner Proxy
Independentemente da nomenclatura, o trabalho provavelmente será mais focado na parte de entrega.
É mais fácil iniciar em consultoria ou empresa de produto?
Nunca é fácil. Se a consultoria for uma boa empresa, pode ser mais fácil fazer uma transição interna.
Como iniciar em consultoria?
Buscando oportunidades na sua área de origem e tentando a migração interna.
Como saber se a consultoria é um bom lugar para trabalhar com produto?
Além das dicas básicas para todas as empresas (olhar Glassdoor, postagens do LinkedIn etc), outros pontos que devem ser observados:
Portfolio de clientes: Um porfolio maior e mais diversificado pode significar uma gama mais ampla de oportunidades. Por exemplo, se a empresa tem clientes no mercado em que você atuava anteriormente, sua curva de aprendizagem pode ser mais curta.
Modelos de trabalho: A vaga é para um projeto/cliente específico? O trabalho é feito no ambiente da empresa ou do cliente? Existem clientes que pedem trabalho presencial? Já vi casos de vagas que estavam anunciadas como “trabalho remoto” porque a empresa é remota, mas a vaga era pra atuar presencialmente em um cliente.
Gestão de pessoas: A gestão das pessoas é feita pela empresa ou pela equipe do cliente? Qual é o envolvimento do RH?
Nível de envolvimento: Se a posição for para um cliente específico, quem serão as pessoas com quem você terá contato direto? Quem toma as decisões de produto?
Comunidade: A empresa contribui para a comunidade de produto? Seja com eventos internos, criação de conteúdo, incentivo às pessoas para participarem etc.
Conclusão
O texto ficou bem grande, e acho que consegui responder a boa parte das perguntas que me fazem. Se não, minha caixa de mensagens está sempre aberta (ainda que, às vezes, demore a responder), pode ficar à vontade para perguntar.
Aleatoriedades
Roadmap de estudos
A F. Zahra Elouali, PM na Hotmart, criou um roadmap de estudos no Notion para quem quer migrar para Produto. Dá para duplicar a página e evoluir conforme a sua necessidade.
Noite do Pecha Kucha
Nesta quarta-feira, a partir das 19:00 horas, estarei ao vivo no canal A Garota de Produto falando sobre Os primeiros 90 dias de uma pessoa de produto. Não perca!
Será que vem mais novidade por aí?
Fui selecionada para a primeira etapa da Academia Itaú de Criadores. Confesso que me inscrevi sem pensar muito, pois sei que a concorrência é grande, não esperava ser selecionada. Porém, agora que entrei, quero ir até o final, espero passar para as próximas fases também. As aulas começam esta semana.
Oii Cíntia, como sempre, curto demais tua partilha bem pé no chão. Agradecida!!
Ahh, tentei acessar o Roadmap do Notion que você indicou, mas apareceu que preciso ser membro do Minu. para acessar. Se tiver como liberar para a gente, fiquei super interessada! :)